PERCURSOS URBANOS: CAMINHAR PARA DESVENDAR A CIDADE

Notícias 20/01/2019

Por Lino Peres, professor aposentado e voluntário no Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC

Gravação feita no primeiro semestre de 2018, durante a disciplina optativa "Ateliê Livre" do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC, com agradecimento aos alunos e alunas e à professora Flávia Gobatto, doutoranda e estagiária na disciplina. 

Com 2019 vem à tona o primeiro episódio dos “Percursos Urbanos”, planejada série que exibe o resultado de caminhadas ao ar livre na Grande Florianópolis como parte, principalmente, de disciplinas e Semanas Acadêmicas no Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC e que faço há alguns anos. Essas caminhadas, chamadas peripatéticas, fazia Aristóteles com os seus alunos em 336 a.C., cerca de 50 anos depois da Academia de Platão. Um desses percursos urbanos agora gravado e editado foi feito no bairro Monte Cristo, na porção continental de Florianópolis, hoje com sete comunidades e cerca de 30 mil moradores. A gravação e edição foram feitas pelo jornalista Rubens Lopes.

Peripatético é entendido no grego como ambulante ou itinerante. Estes percursos têm um sentido sinestésico, como percepção ou experiência sensorial de um ambiente (postura mental e sensorial, visão e tato/corpo) e como cinestésico, que se refere ao sentido muscular, a um conjunto de sensações que nos permite a percepção dos movimentos, no caso os da e na cidade e suas arquiteturas, escalas, texturas, toponímias do caminhar e das proporções das construções, pessoas, objetos, clima, ventos, sombreamento, ruídos, cheiros etc, que constituem os ambientes humanos e naturais.

AULA PERIPATÉTICA

Para além das definições abstratas do espaço e suas qualificações, descritas e analisadas na literatura especializada, o estudante percebe os lugares por onde passa, atravessa, permeia, percorre e sente, como se fosse uma grande maquete de que ele, estudante, é parte constituinte, diferentemente de quando desenha em escala reduzida ou ampliada, sendo aqui observador e projetista.

A aula peripatética cumpre uma função, neste primeiro nível acadêmica e intelectiva, no sentido de compreender e apreender a ambiência, pelo corpo e sentidos, que tornam viva a percepção corporal para além do intelecto. Cabe aqui o sentido da contemplação ativa em que se observa, mas também se é observado e experimentado. O estudante dança com a realidade que percorre e vai se sentindo parte dela e com ela, processo no qual modifica e transcende sua bolha perceptiva tradicional como classe social, subjetividade aprendida na universidade, e que parte dela, para além de seu grupo antropológica e socialmente vivido.

Um segundo nível que se persegue com estes percursos na cidade é desenvolver a alteridade social, perceber outra condição humana, de classe ou segmento social que o estudante analisa, explica ou descreve intelectivamente em fontes secundárias ou que assiste em interpretações e descrições alheias, pela imprensa e mídia em geral e redes sociais. Em grande parte das situações, as desconhece, constituindo preconceitos que acabam lhe vendando os olhos, o corpo e a mente, impedindo-o de verdadeiramente conhecer outra realidade.

Neste sentido, as caminhadas adentram regiões normalmente desconhecidas pelos estudantes, escolhidas por estratégia pedagógica e política, priorizando-se aquelas regiões empobrecidas ou com condições opostas às condições sociais da maioria dos estudantes, mas também incluem visitas a locais de média e alta renda. O objetivo é que desvendem realidades desconhecidas, com métodos de aproximação que se assemelham à antropologia, à geografia e suas toponímias, à história e estórias dos lugares, suas gentes, vivências, formas de vida, que normalmente ficam encobertas pelas narrativas dominantes que as excluem ou são escondidas ou invisibilizadas, aparecendo somente a precariedade e a insuficiência de suas infraestruturas e de equipamentos públicos e serviços, sem se abordarem as causas estruturais dessa realidade.

APROPRIAÇÕES DA CIDADE

Outro objetivo nestes percursos é a apreensão das formas como a cidade é apropriada, naquilo que Henri Lefebvre caracterizou: os espaços percebidos, os espaços concebidos e os espaços vividos e/ou apropriados, revelando que o território tem diferentes e complexas escalas, significações e ressignificações. Os espaços observados e percorridos pelo estudante são atravessados por diferentes tempos e as paisagens são ao mesmo tempo fotografias de tempos pretéritos e que se modificam no trajeto percorrido. O estudante pode perceber que o espaço não deve ser somente desenhado, ignorando-se a vivência produzida socialmente, a todo instante, com suas histórias e movimentos. E nisto, o que se observa é a paisagem de tempos e tempo de paisagens para além do olhar do geógrafo e do arquiteto, algo que somente percorrendo o espaço se pode apreender.

É, portanto, aprendizagem pela experiência não somente letrada, mas vivida, que o estudante não esquecerá, porque lá coexistem as dores das populações, o seu sofrimento e suas alegrias. É vida pulsante que qualquer acadêmico ou cientista social jamais poderá descrever em toda sua amplitude e complexidade, mas que é conhecimento vivido que deixará marcas indeléveis no observador.  E é aqui que reside a formação do estudante para além da academia, a sua formação cidadã e política, que é totalidade que vai se formando e que somente ele pode vivenciar e passar adiante, como um marinheiro que viajou muitos mares e só a partir daí, para além da cartografia científica e ensinada por fontes secundárias e laboratoriais, começa a compreender o mundo como é construído.

Neste sentido é que os percursos urbanos se revestem de incalculável importância acadêmica e política, no sentido maior da pólis vivida e como forma de os homens viverem e se organizarem em sociedade em disputa permanente. A Arquitetura e o Urbanismo aqui ganham dimensão transcendente como âmbitos do abrigo humano coletivo e individual, como obra coletiva em constante conflito de interesses históricos, sociais, econômicos, políticos, territoriais e segregadores e espacialmente desiguais.

Exemplificando as observações acima, analisam-se as configurações espaciais separadas por classe ou segmentos sociais. Quando se visita o Norte da Ilha, percorrem-se, por exemplo, o bairro Jurerê Internacional, como um dos preços de terreno mais caros do país, e a Vila do Arvoredo, na qual vivem ou sobrevivem precariamente populações de muito baixa renda, com casas e barracos sobre as dunas, e onde se registraram casos de crianças com areia nos pulmões. Ao percorrer estes dois lugares, o estudante vai percebendo que a cidade é desigual e segregada e que não é reduzível ao aspecto técnico e controlável; ele vai construindo seu pensamento sobre a diversidade e complexidade de que é constituído o território e a cidade. Vai tendo uma visão pluridisciplinar e transdisciplinar, que a academia, com o seu conhecimento, ainda que fundamental, mas parcelário, não oferece.

Nesses percursos urbanos, são aspectos a serem observados as inclinações dos terrenos da região percorrida, as paisagens próximas e distantes, nas quais verificamos as topografias e as formas de urbanização, que se dão por segmentos e classes sociais, orientadas pela valorização imobiliária, geomorfologias, sistema viário e de acessibilidade urbana etc. Analisam-se as formas de ocupação urbana e suas paisagens (sua visualidade, as massas naturais e antrópicas), os edifícios, arruamentos, infraestruturas, gabaritos, tipologias dos edifícios habitacionais e comerciais e sua relação com o entorno. Nisto, observa-se como o Plano Diretor configura essas morfologias e seu regramento, o sistema viário oficial e informal (ruelas e servidões), os condomínios fechados, os loteamentos abertos. Toda esta configuração constituiu-se historicamente, abordagem feita pelo professor, que continuamente interrompe o trajeto e aborda aspectos não vistos diretamente, apontando causas ou determinações em nível não observável à primeira vista, de ordem legislativa, legal, normativa etc.

A arquitetura é analisada e vivenciada em sua história comparada com as arquiteturas anteriores e como estas foram configurando-se em termos tipológicos, estéticos, normativos etc. As várias idades das construções vão sendo explanadas como páginas de um livro, assim como seus rastros. As orientações solares, o vento, a chuvas e as proteções ou sua ausência, os acertos e equívocos técnicos, as ruas, vielas e servidões e a forma como foram desenhadas ou não ou como foram permitidas pela legislação urbana através da prefeitura ou Câmara Municipal.

O MONTE CRISTO

Durante o percurso, conversa-se com as lideranças locais e moradores e estes depoimentos vão dando corpo ao observado e/ou explicado de forma social e histórica. Os entrevistados contam a história do lugar, suas origens e as formas de ocupação. Este primeiro “Percursos Urbanos”, pela primeira vez gravado e editado, foi no bairro Monte Cristo - região já visitada em outras ocasiões -,  por várias motivos:

  1. Abriga a maior concentração de população migrante e particularmente negra de Florianópolis (apesar de o Monte Serrat ocupar o segundo lugar e ser mais antigo) e tem o maior número de equipamentos públicos e comunitários, apesar da notável carência social e abandono que vem sofrendo por parte do poder público há alguns anos;
  2. É uma região que teve a maior ocupação organizada do município e da região, para não dizer de Santa Catarina, no final dos anos 1980 e início dos 90; é, portanto, história viva daqueles que se apropriaram de um território pela ausência ou omissão do Estado na área do emprego e das políticas sociais e de habitação;
  3. Foi uma das poucas áreas contempladas pelo Programa Habitar Brasil/BID no governo do Fernando Henrique Cardoso (FHC), com a presença inédita, ainda que problemática, segundo um processo participativo do poder público na área com diversos órgãos da prefeitura.
  4. É uma região, como poucas, em que está um dos maiores conjuntos habitacionais de Santa Catarina (Panorama), construído no início dos anos 1980, no modelo apregoado pelo regime militar, e que, pela crise econômica da época, ficou em um terço de sua meta, com 800 apartamentos e não os 2.500 previstos, mas rodeado por sete assentamentos ou ocupações que foram consolidando-se ao longo dos anos graças às lutas e mobilizações dos ocupantes por implantação de infraestrutura e equipamentos públicos e comunitários. Hoje, é uma área consolidada, um mosaico de habitações e serviços, mas que ainda enfrenta a precariedade e a insuficiência urbana e habitacional. Temos, hoje, herdeiros daqueles primeiros moradores na Ocupação Fabiano de Cristo, ocupando um terreno onde um programa habitacional na gestão do prefeito Dário Berger ficou incompleto e com grande parte da área vazia.
  5. Constitui-e em uma região ou bairro com sete comunidades e mais de 30 mil habitantes, uma cidade dentro de uma cidade no limite dos municípios de Florianópolis e São José, com características metropolitanas e sendo ainda uma área-dormitório de força de trabalho para os municípios no entorno.  

No caso de Monte Cristo, abordam-se pontos estratégicos do lugar, como as ocupações perto do conjunto Panorama. Caminha-se por ruelas, identificando seu traçado original e o traçado recente implementado pela prefeitura, que foi dando a fisionomia atual. Busca-se, também, ir além da aparência para entender a conformação da região, seu significado constitutivo social, as demandas locais, as organizações comunitárias etc. Após a consolidação dos assentamentos no Monte Cristo, explica-se, de forma sintética, como se implementou o Programa Habitar Brasil/BID e o desenho diminuto dos apartamentos, a edificação geminada compacta, inapropriada à época para famílias numerosas etc e sua comparação com o desenho do Panorama, que é um projeto padrão dos anos 1970, no período militar. Comparam-se os blocos individualizados e de gabarito baixo do Programa Habitar Brasil/BID com o conjunto de concentração populacional do Panorama, que era um modelo vigente e nos anos 1980 entrou em crise. Aquelas edificações baixas do Habitar Brasil BID, para a época, eram uma alternativa mais humanizada, de menor concentração de residências em forma geminada e em escala mais humana.

No entanto, a área reduzida das casas geminadas em dois pavimentos (de 36 a 42 metros quadrados) foi alvo de protestos. Também havia falta de expansão lateral e de espaço para depósito (parte da população vivia da reciclagem) e garagem para carro (os técnicos diziam à época que era um equipamento de luxo), falta de proteção contra o calor nos telhados e não previsibilidade para moradia de idosos e pessoas com deficiência, problema corrigido posteriormente, mas de forma parcial. Estes e outros aspectos são explicados pelo professor, mas também desvendados pelos estudantes, que vão conversando com os moradores.

O PAPEL DA DOCÊNCIA

A próxima etapa, depois do percurso, é retornar ao espaço universitário, para analisar, agora pelas fontes secundárias, as determinações, causas e história dos lugares percorridos. Os estudos e pesquisas passam a ser iluminados de forma viva e motivada, porque o corpo, os sentidos, a pele, o olhar, os ouvidos e o olfato estiveram no espaço urbano. A elevação ou descenso ao abstrato toma sentido e o estudante ganha autonomia em seu agora percurso cognitivo, que foi embebido pela vivência do real. As aulas são compreendidas em sua maior amplitude e não de forma desinteressada e sem a atenção vivida. Quando isto ocorre, penso que cumprimos grande parte de nosso trabalho maior da docência, que é gerar a fome de saber no e na estudante, impulsioná-los para o desconhecido, dar-lhes autonomia de pensamento e reflexão para a profissão e para a vida.

 

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